quarta-feira, 3 de dezembro de 2008

Criação do código ambiental catarinense: uma reflexão sobre as enchentes

As imagens de morros caindo, de desespero e morte, de casas, animais e
automóveis sendo tragados por lama e água, vivenciadas por centenas de
milhares de pessoas no Vale do Itajaí e Litoral Norte Catarinense nos
últimos dias, são distintas, e muito mais graves, das experiências de
enchentes que temos na memória, de 1983 e 1984. Por que tudo aconteceu de
forma tão diferente e tão trágica? Será que a culpa foi só da chuva, como
citam as manchetes? Nossa intenção não é apontar culpados, mas mencionar
alguns fatos para reflexão, para tentar encaminhar soluções mais sábias e
duradouras, e evitar mais e maiores problemas futuros.

Houve muita chuva sim. No médio vale do Itajaí ocorreu mais que o dobro da
quantidade de chuva que causou a enchente de agosto de 1984. Aquela enchente
foi causada por 200 mm de chuva em todo o Vale do Itajaí.
Agora, em dois dias foram registrados 500 mm de precipitação, ou seja, 500
litros por metro quadrado, mas somente no Médio Vale e no Litoral.
A quantidade de chuva de fato impressiona. Segundo especialistas do
Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (INPA), a floresta
amazônica é a principal fonte de precipitações de grande parte do
continente e tudo o que acontecer com ela modificará de maneira decisiva o
clima no Sul e no norte da América do Sul. Assim, as inundações de Santa
Catarina e a seca na Argentina seriam atribuídas à fumaça dos incêndios
florestais, que altera drasticamente o mecanismo de aproveitamento do vapor
d'água da floresta amazônica. Outros especialistas discordam dessa hipótese
e afirmam que houve um sistema atmosférico perfeitamente possível no Litoral
Catarinense. Existe uma periodicidade de anos mais secos e anos mais úmidos,
com intervalo de 7 a 10 anos, e entramos no período mais úmido no ano
passado. Esse mecanismo faz parte da dinâmica natural do clima. De qualquer
forma, outros eventos climáticos como esse são esperados e vão acontecer.

Mas o Vale do Itajaí sabe lidar com enchentes melhor do que qualquer
outra região do país. Claro que muito pode ser melhorado no
gerenciamento das cheias, à medida que as prefeituras criarem estruturas de
defesa civil cada vez mais capacitadas e à medida que os sistemas de
monitoramento e informação forem sendo aperfeiçoados. De todos os desastres
naturais, as enchentes são os mais previsíveis, e por isso mais fáceis de
lidar. Os deslizamentos e as enxurradas não. Esses são praticamente
imprevisíveis, e é aí que reside o real problema dessa catástrofe.

É preciso compreender que chuvas intensas são parte do clima subtropical em
que vivemos. E é por causa desse clima que surgiu a mata atlântica.
Ela não é apenas decoração das paisagens catarinenses, tanto como as
matas ciliares não existem apenas para enfeitar as margens de rios. A
cobertura florestal natural das encostas, dos topos de morros, das
margens de rios e córregos existe para proteger o solo da erosão
provocada por chuvas, permite a alimentação dos lençóis d'água e a
manutenção de nascentes e rios, e evita que a água da chuva provoque
inundações rápidas (enxurradas). A construção de habitações e estradas sem
respeitar a distância de segurança dos cursos d'água acaba se voltando
contra essas construções como um bumerangue, levando consigo outras
infra-estruturas, como foi o caso do gasoduto. Esse é um dos componentes da
tragédia.

Já os deslizamentos, ou movimentos de massa, são fenômenos da dinâmica
natural da Terra. A chuva em excesso acaba com as propriedades que dão
resistência aos solos e mantos de alteração para permanecerem nas encostas.
O grande problema de ocupar encostas é fazer cortes e morar embaixo ou acima
deles. Há certas encostas que não podem ser ocupadas por moradias,
principalmente as do vale do Itajaí, onde o manto de intemperismo, pouco
resistente, se apresenta muito profundo e com vários planos de possíveis
rupturas (deslizamento), além da grande inclinação das encostas. E é aí que
começa a explicação de outra parte da tragédia que estamos vivendo. A
ocupação dos solos nas cidades não tem sido feita levando em conta que estão
assentadas sobre uma rocha antiga, degradada pelas intempéries, e cuja
capacidade de suporte é baixa. Através dos
cortes aumenta a instabilidade. As fortes chuvas acabaram com a
resistência e assim o material deslizou.

A ocupação do solo é ordenada por leis municipais, os planos diretores
urbanos. Esses planos diretores definem como as cidades crescem, que áreas
vão ocupa r e como se dá essa ocupação. Por falta de conhecimento ecológico
dos poderes executivo, judiciário e legislativo (ou por não levá-lo em
consideração), o código florestal tem sido desrespeitado pelos planos
diretores em praticamente todo o Vale do Itajaí, e também no litoral
catarinense, sob a alegação de que o município é soberano para decidir, ou
supondo que a mata é um enfeite desnecessário. Da mesma forma, as encostas
têm sido ocupadas, cortadas e recortadas, à revelia das leis da Natureza.
Trata-se de uma falta de compreensão que está alicerçada na idéia, ousada e
insensata, de que os terrenos devem ser remodelados para atender aos nossos
projetos, em vez de adequarmos nossos projetos aos terrenos reais e sua
dinâmica natural nos quais irão se assentar. A postura não é diferente nas
áreas rurais, onde a fiscalização ambiental não tem sido eficiente no
controle de desmatamentos e cultivos nas áreas rurais, como mostram as
denúncias freqüentes veiculadas nas redes que conectam ambientalistas e
gestores ambientais de toda região. A irresponsabilidade se estende,
portanto, para toda a sociedade.

Deslizamentos, erosão pela chuva e ação dos rios apresentam fatores
condicionantes diferentes, mas todos fazem parte da dinâmica natural. A
morfologia natural do terreno é uma conquista da natureza , que vai
lapidando e moldando a paisagem na busca de um equilíbrio dinâmico.
Erode aqui, deposita ali e assim vai conquistando, ao longo de milhões de
anos, uma estabilidade dinâmica. O que se deve fazer é conhecer sua forma de
ação e procurar os cenários da paisagem onde sua atuação seja menos intensa
ou não ocorra. As alterações desse modelado pelo homem foram as principais
causas dos movimentos de massa que ocorreram em toda a região. Portanto,
precisamos evoluir muito na forma de gestão urbana e rural e encontrar
mecanismos e instrumentos que permitam a convivência entre cidade, rios e
encostas. Por isso tudo, essa catástrofe é um apelo à inteligência e à
sabedoria dos novos ou reeleitos gestores municipais e ao governo estadual,
que têm o desafio de conduzir seus municípios e toda Santa Catarina a uma
crescente robustez aos fenômenos climáticos adversos. Não adianta
reconstruir o que foi destruído, sem considerar o
equívoco do paradigma que está por trás desse modelo de ocupação. É
necessário pensar soluções sustentáveis. O desafio é reduzir a
vulnerabilidade.

Uma estranha coincidência é que a tragédia catarinense ocorreu na semana em
que a Assembléia Legislativa concluiu as audiências públicas sobre o Código
Ambiental, uma lei que é o resultado da pressão de fazendeiros, fábricas de
celulose, empreiteiros e outros interesses, apoiados na justa preocupação de
pequenos agricultores que dispõe de pequenas extensões de terra para
plantio. Entre outras propostas altamente criticadas por renomados
conhecedores do direito constitucional e ambiental, a drástica redução das
áreas de preservação permanente ao longo de rios, a desconsideração de áreas
declivosas, topos de morro e nascentes, além da eliminação dos campos de
altitude (reconhecidas paisagens de recarga de aqüíferos) das áreas
protegidas, são dispositivos que aumentam a chance de ocorrência e agravam
os efeitos de catástrofes como a que estamos vivendo. Alega o deputado
Moacir Sopelsa que a lei ambiental precisa se ajustar à estrutura fundiária
catarinense, como se essa estrutura fundiária não fosse, ela mesma, um
produto de opções anteriores, que negligenciaram a sua base de sustentação.
Sugerimos que os deputados visitem Luiz Alves, Pomerode,Blumenau, Brusque,
só para citar alguns municípios, para aprender que a estrutura fundiária e a
urbana é que precisam se ajustar à Natureza.
Dela as leis são irrevogáveis e a tentativa de revogá-las ou ignorá-las
custam muitas vidas e dinheiro público e privado.

É hora de ter pressa em atender os milhares de flagelados. Não é hora de ter
pressa em aprovar uma lei que torna o território catarinense ainda mais
vulnerável para catástrofes naturais.

Prof. Dr. Antonio Fernando S. Guerra (UNIVALI)
Prof. Dra. Beate Frank (FURB, Projeto Piava)
Prof. Dra. Edna Lindaura Luiz (UNESC)
Prof. Dr. Gilberto Valente Canali (Ex-presidente da Associação
Brasileira de Recursos Hídricos)
Profa. Iliane Kohler (UFSC)
João Guilherme Wegner da Cunha (CREA/CONSEMA)
Prof. Dr. Juarês Aumond (FURB)
Prof. Dr. Julio Cezar Refosco (FURB)
Prof. Dr. Lino Fernando Bragança Peres (UFSC)
Pr of. Dra. Lúcia Sevegnani (FURB)
P rof. Dr. Luciano Florit (FURB)
Prof. Dr. L uiz Fernando P. Sales (UNIVALI)
Prof. D r. Luiz Fernando Scheibe (UFSC)
Prof . Dr. Marcus Polette (UNIVALI)
Prof. Dra. Noemia Bohn (FURB)
Prof. Dra. Sandra Momm Schult (FURB)
Equipe do Projeto Piava (Fundação Agência de Água do Vale do Itajaí).

Blumenau, 28 de novembro de 2008

Nenhum comentário: