Cultura não tem mais importância. Literatura, então, nem pensar! Estamos na era do espetáculo e do entretenimento. É o pão e o circo midiáticos, temperados para distrair e alienar o público. A leitura provoca reflexão. Portanto, está na contramão do consumismo. Tudo a ver com o clássico Fahrenheit 451, romance escrito por Ray Bradbury, lançado em 1943 e adaptado para o cinema pelo genial Truffaut em 1966. A ideia original é de 1947, com o conto Bright Phoenix, que só seria publicado em 1963 tendo antes disso, em 1951, inspirado a novela The Fireman. Esta foi publicada em capítulos na revista Playboy, entre março e maio de 1954.
Bradbury escreveu o livro durante a Guerra Fria, alertando para a crescente paranoia da sociedade norte-americana daquela época. Contudo, é quase certo que o ponto de partida tenha sido o trauma provocado pelo 10 de maio de 1933, quando os nazistas queimaram livros em várias praças da Alemanha. O romance fala de um tempo tenebroso, no qual as obras literárias são proibidas e as opiniões próprias passam a ser consideradas antissociais. O governo ditatorial suprime o pensamento crítico e manda queimar livros e leitores – se preciso for. O título da obra refere-se à temperatura na qual o papel pega fogo.
A fábula de Bradbury está perto de se tornar realidade, pelo menos no Brasil. Por mais que os governos falem em prestigiar o livro e a leitura, o fato é que o brasileiro continua sendo um dos povos que menos lê em todo o mundo. Estamos atrás de países asiáticos e dos nossos vizinhos sul-americanos. Ainda não queimamos livros em praças públicas, mas pelo jeito chegaremos lá.
Da modernidade ao caos
Houve um tempo no Brasil em que ler era chique. A classe média em ascensão nos anos JK valorizava a leitura e prestigiava todas as formas de arte. O país mergulhava na modernidade e havia sede de conhecimento. O cinema era novo, a arquitetura e a bossa eram novas, o teatro era feito em arena e a poesia se tornava tão concreta quanto o sonho nacionalista. Veio Jânio Quadros, a tumultuada renúncia, a posse e a deposição de João Goulart. O longo período de ditadura preconizou o avanço econômico em detrimento dos valores nacionais e libertários. A censura imperou durante muito tempo, ceifando a criatividade de cineastas, compositores, dramaturgos e escritores que insistissem em falar da realidade.
Por estranha contradição, o regime militar tentou minimizar o analfabetismo ao estimular programas educacionais como o Mobral. Na outra ponta, promoveu reformas pedagógicas que deram início ao irreversível sucateamento do ensino público no país. Ao mesmo tempo, modernizava-se a televisão, que passou a ser o principal veículo de propaganda oficial. Junto com o entretenimento eletrônico, teve início uma espécie de lavagem cerebral promovida pelo Big Brother globalizado, que lembra a realidade opressora do romance 1984, de George Orwell.
A ditadura caiu de podre e o país se redemocratizou sem passar a limpo questões fundamentais, como a tortura, a corrupção e a falta de investimentos em educação, saúde e segurança pública. Esses serviços foram pouco a pouco sendo privatizados, convertidos numa fábrica de dinheiro para empresas especializadas.
Qualidade questionável
A partir do governo Collor, o neoliberalismo tornou-se palavra de ordem, mesmo que disfarçado por programas assistencialistas, como o Bolsa Família. Nem o sociólogo FHC nem o operário Lula se preocuparam de fato com a melhoria da educação. Em vez de formar cidadãos, o país forma mão-de-obra especializada e consumidores de segunda classe.
A mídia acompanha a tendência, divulgando a pior música do mundo em detrimento da qualidade que em outras épocas influenciou artistas lá fora. Mesmo as telenovelas, que já tiveram autores do porte de Janete Clair e Dias Gomes, perdem qualidade ao falar de personagens caricatos, quase inexistentes. E o pior é que essa produção medíocre influencia o cinema nacional, cuja maioria dos filmes de sucesso reproduz os chavões televisivos.
Nesse cenário, o livro perdeu e continua perdendo espaço nos jornais e nas telas, tendo agora que enfrentar a concorrência da internet. As obras que encabeçam as listas dos mais vendidos quase sempre são best sellers importados, de qualidade questionável e que nada têm a ver com a nossa realidade.
“Um país se faz com homens e livros”
Autores brasileiros têm cada vez mais dificuldades para publicar e divulgar seus originais. Boa parte das editoras está de olho nas compras oficiais e mostra-se pouco interessada em atrair o leitor avulso. O resultado disso, somado à concorrência dos sites de compra, é que muitas das poucas livrarias do país estão fechando as portas.
O Ministério da Cultura tenta fazer a sua parte, implantando programas como o Plano Nacional do Livro e Leitura (PNLL), mas fica difícil sem o apoio da mídia e de governos municipais e estaduais. Há que se valorizar o livro como veículo de educação e formação humana. É preciso que professores e pais reaprendam a ler histórias para as crianças, dando a elas o exemplo pessoal de amor à leitura.
As grandes civilizações se imortalizaram por meio da arquitetura e da escrita, enquanto as principais religiões se codificaram em grandes livros como a Bíblia, o Corão e o Mahabharata. Como disse Monteiro Lobato, “um país se faz com homens e livros”. Em outras palavras, fora dos livros não há salvação.
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[Jorge Fernando dos Santos é escritor e jornalista, Belo Horizonte, MG]